Memorial
Recordo do primeiro dia, a rua cheia de mães e crianças indo na mesma direção; a escola. E também recordo de um cachorro acompanhando uma das crianças, o meu ficara em casa. O primeiro dia das letras acontecera antes, eu desenhava cachorros e minha mãe ensinava a desenhar vogais, porque não houvera vaga para mim no jardim no ano anterior. Lembro da professora do pré, que não devolveu a guirlanda de natal de minha mãe, emprestada para decorar a sala. Lembro da dificuldade dos colegas em desenhar o nome e os números, eu já tinha aprendido, e da dificuldade da professora em escrever meu sobrenome – minha mãe teve de corrigir a pasta.
Na primeira série aprendi letra cursiva a duras penas, horas escrevendo em casa para diminuir a letra sob os olhos de minha mãe, para enfim poder brincar com o cachorro, e aprendi a escrever seu nome: Moleque. Minha madrinha comprava livros antes de eu saber ler, histórias para pintar. Depois narrativas longas que eu gostava de ouvir aos fins das tardes de domingo, nunca para dormir.
Na segunda série, em nova escola, meus colegas aprendiam letra cursiva, eu precisava aprender letra de forma. Horas em casa copiando letras de livros, do professor de catequese... Não lembro de minha mãe neste processo, lembro apenas do meu desejo.
Desejava decifrar as folhas da missa (as da escola eu conseguia, todas letras que eu conhecia), me encantava ver as pessoas lendo juntas, consegui!
Minha madrinha trazia livros, eu lia. Minha madrinha veio morar conosco, me encantava vê-la lendo livros grossos por horas a fim. Passei a ser aluna preferida das peças escolares no fim das séries inicias (em nova escola novamente), não tinha dificuldade em decorar folhas de textos, as minhas falas e as dos colegas.
Nas séries finais (mais uma escola nova) meu cachorro morreu, esqueci as duas últimas estrofes do texto do geogral (versos não ditos que lembro até hoje) e descobri o Vale Verde de Urda Krüger nas aulas de leitura. Encantou-me ler sobre o moro Jaraguá. Minha madrinha disse que não era daqui, SP também tem Jaraguá, era incompreensível para ela histórias de tão perto. Eu continuei encantada e o li em algumas aulas, até a minha professora o tirar da caixa da coleção Vaga-lume.
Alguns anos depois descobri quem era a autora e o que era a história, ainda não terminei de lê-lo, ainda desejo lê-lo, e como foi mágico descobrir que se escreve aqui e daqui. Compreendi que minha madrinha não era leitora apaixonada, somente apreciava romances de banca e livros de auto-ajuda. Mas ela compreendeu que eu era leitora alguns anos antes e levou-me a biblioteca pública, por causa de Urda. A menina tímida não pediu o livro, foi procurá-lo, existiam muitos e no não achar preferiu pegar outro, gozaram dela pelo livro que escolhi: Bruxa Madrinha. Homenagem! Disseram. Não deixou de ser. Madrinha-bruxa-boa que abriu o mundo dos livros com suas pequenas poções (em pequenas porções) que aprendi e passei além. Bruxa Madrinha falava de magia e de realidade social, uma bruxa que vigia uma menina de favela (numa época que ainda não era moda) e tenta intervir em suas dificuldades porque queria uma afilhada para ocupar-se. Parei de ler sobre cachorros e histórias de amor, descobri os livros “pensantes” livros críticos que me faziam saltar o coração. Aprendi muitas línguas de muitos livros e não conseguimos mais conversar sobre eles; já li seus romances com prazer, ela continua lendo. Minha mãe não me deixou ter outro cão, adotei gatos, pretos!
No ensino médio tentei escrever, tinha problemas com poesia, passei a recebê-la quase todos os dias antes da universidade e quase todas as semanas durante. Consegui uma chinchila, meus gatos morreram, meu filho nasceu e fiz as pazes com os poemas de minha vida. E deixei-os ir, descobri minha própria poesia e com ela minhas letras.
Conheci escritores do meu chão, e a literatura infantil. Saboreio ler e criar histórias com e para meu filho. Encontrei amigos de escrita e de leitura para o meu dia-a-dia sem hora ou lugar (nas madrugadas de descanso, a luz da lua, debaixo de cobertas; nos dias de sol sobre o gramado, debaixo de árvores; nos intervalos do dia no msn, orkut, telefone...) para ler Drummond, Carpinejar, Neruda, Clarice, Manoel de Barros, Galeano, Cortazar, Bukowski e quem mais vir nos visitar. Para falar de e com histórias e criar histórias; nossos próprios escritos, na ficção e na vida. “Dividimentos” tímidos mais confiantes, de textos nascidos em nossos corações que ainda precisam ser regados.
Descobri uma irmã de letras, sorrisos e aprendizados compartilhados dia a dia ainda que seja preciso ler ao telefone de madrugada. Pequenas visitas de meu filho nestas descobertas, textos nascidos pela existência dele.Textos lidos na escola, sementes de possibilidades encantadoras ao desafiá-los a encontrar suas próprias letras e poesias.
Vivo no mundo dos livros entre o real e a ficção, já não os separo e nem preciso. Descobri que posso escrever, descobri amigos que escrevem, instigo alunos a escrever, e um dia, talvez, meu filho. Respiro prosas e versos num mundo imenso/intenso onde muitos tem o mesmo respirar, cada qual a sua maneira. Adotei um vira-lata para meu filho...
por Adrins com livros e cães
Recordo do primeiro dia, a rua cheia de mães e crianças indo na mesma direção; a escola. E também recordo de um cachorro acompanhando uma das crianças, o meu ficara em casa. O primeiro dia das letras acontecera antes, eu desenhava cachorros e minha mãe ensinava a desenhar vogais, porque não houvera vaga para mim no jardim no ano anterior. Lembro da professora do pré, que não devolveu a guirlanda de natal de minha mãe, emprestada para decorar a sala. Lembro da dificuldade dos colegas em desenhar o nome e os números, eu já tinha aprendido, e da dificuldade da professora em escrever meu sobrenome – minha mãe teve de corrigir a pasta.
Na primeira série aprendi letra cursiva a duras penas, horas escrevendo em casa para diminuir a letra sob os olhos de minha mãe, para enfim poder brincar com o cachorro, e aprendi a escrever seu nome: Moleque. Minha madrinha comprava livros antes de eu saber ler, histórias para pintar. Depois narrativas longas que eu gostava de ouvir aos fins das tardes de domingo, nunca para dormir.
Na segunda série, em nova escola, meus colegas aprendiam letra cursiva, eu precisava aprender letra de forma. Horas em casa copiando letras de livros, do professor de catequese... Não lembro de minha mãe neste processo, lembro apenas do meu desejo.
Desejava decifrar as folhas da missa (as da escola eu conseguia, todas letras que eu conhecia), me encantava ver as pessoas lendo juntas, consegui!
Minha madrinha trazia livros, eu lia. Minha madrinha veio morar conosco, me encantava vê-la lendo livros grossos por horas a fim. Passei a ser aluna preferida das peças escolares no fim das séries inicias (em nova escola novamente), não tinha dificuldade em decorar folhas de textos, as minhas falas e as dos colegas.
Nas séries finais (mais uma escola nova) meu cachorro morreu, esqueci as duas últimas estrofes do texto do geogral (versos não ditos que lembro até hoje) e descobri o Vale Verde de Urda Krüger nas aulas de leitura. Encantou-me ler sobre o moro Jaraguá. Minha madrinha disse que não era daqui, SP também tem Jaraguá, era incompreensível para ela histórias de tão perto. Eu continuei encantada e o li em algumas aulas, até a minha professora o tirar da caixa da coleção Vaga-lume.
Alguns anos depois descobri quem era a autora e o que era a história, ainda não terminei de lê-lo, ainda desejo lê-lo, e como foi mágico descobrir que se escreve aqui e daqui. Compreendi que minha madrinha não era leitora apaixonada, somente apreciava romances de banca e livros de auto-ajuda. Mas ela compreendeu que eu era leitora alguns anos antes e levou-me a biblioteca pública, por causa de Urda. A menina tímida não pediu o livro, foi procurá-lo, existiam muitos e no não achar preferiu pegar outro, gozaram dela pelo livro que escolhi: Bruxa Madrinha. Homenagem! Disseram. Não deixou de ser. Madrinha-bruxa-boa que abriu o mundo dos livros com suas pequenas poções (em pequenas porções) que aprendi e passei além. Bruxa Madrinha falava de magia e de realidade social, uma bruxa que vigia uma menina de favela (numa época que ainda não era moda) e tenta intervir em suas dificuldades porque queria uma afilhada para ocupar-se. Parei de ler sobre cachorros e histórias de amor, descobri os livros “pensantes” livros críticos que me faziam saltar o coração. Aprendi muitas línguas de muitos livros e não conseguimos mais conversar sobre eles; já li seus romances com prazer, ela continua lendo. Minha mãe não me deixou ter outro cão, adotei gatos, pretos!
No ensino médio tentei escrever, tinha problemas com poesia, passei a recebê-la quase todos os dias antes da universidade e quase todas as semanas durante. Consegui uma chinchila, meus gatos morreram, meu filho nasceu e fiz as pazes com os poemas de minha vida. E deixei-os ir, descobri minha própria poesia e com ela minhas letras.
Conheci escritores do meu chão, e a literatura infantil. Saboreio ler e criar histórias com e para meu filho. Encontrei amigos de escrita e de leitura para o meu dia-a-dia sem hora ou lugar (nas madrugadas de descanso, a luz da lua, debaixo de cobertas; nos dias de sol sobre o gramado, debaixo de árvores; nos intervalos do dia no msn, orkut, telefone...) para ler Drummond, Carpinejar, Neruda, Clarice, Manoel de Barros, Galeano, Cortazar, Bukowski e quem mais vir nos visitar. Para falar de e com histórias e criar histórias; nossos próprios escritos, na ficção e na vida. “Dividimentos” tímidos mais confiantes, de textos nascidos em nossos corações que ainda precisam ser regados.
Descobri uma irmã de letras, sorrisos e aprendizados compartilhados dia a dia ainda que seja preciso ler ao telefone de madrugada. Pequenas visitas de meu filho nestas descobertas, textos nascidos pela existência dele.Textos lidos na escola, sementes de possibilidades encantadoras ao desafiá-los a encontrar suas próprias letras e poesias.
Vivo no mundo dos livros entre o real e a ficção, já não os separo e nem preciso. Descobri que posso escrever, descobri amigos que escrevem, instigo alunos a escrever, e um dia, talvez, meu filho. Respiro prosas e versos num mundo imenso/intenso onde muitos tem o mesmo respirar, cada qual a sua maneira. Adotei um vira-lata para meu filho...
por Adrins com livros e cães
Um comentário:
adri, adri,
que escrito bonito.
bonito porque sincero.
bonito porque resgata memórias de leitura.
parabéns, parabéns!
o blog está lindo!
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