quarta-feira, 2 de abril de 2008

Coração de Valentin- Parte II

Não começe por aqui, esta é a segunda parte...

Coração de Valentin- Parte II

Valentin tinha nove anos da primeira vez que me perguntou sobre sua família e lembro-me da cada palavra trocada como se as tivesse acabado de pronunciá-las. Era fim de tarde e ele entrou em nossa cabana da mesma maneira que sempre fazia alegre e sorridente, e sentou-se no seu banco em frete a janela para observar o horizonte - seu lugar preferido para assistir o sol se por - e de repente falou, como se tivesse recordado de algo trivial:
- Mestre, ouvi Flora falando que minha mãe está morta... Eu tive uma mãe?
E talvez, impulsionado por sua tranqüilidade, ou pela necessidade de finalmente verbalizar todo o ocorrido, depois de nove anos, foi sem nenhum constrangimento ou receio que contei tudo com sinceridade:
- Você tem uma mãe, um pai e um irmão.
- Mesmo?! E... porque eu nunca os vi?
- Seus pais acreditam que você morreu, há muito tempo. Eles não sabem que você está vivo.
- Por quê?
- Por que seu pai o queria morto.
Tive um calafrio ao terminar de dizer aquelas palavras, Valentin era sensato até demais para sua idade, mas ainda era criança e arrependi-me de as tê-la dito com tanta naturalidade. No entanto, minhas palavras não o perturbaram e ele continuou a questionar como se falássemos de algo trivial:
- Por que ele não me quis, ele não gostou de mim?
- É muito mais complicado que isto... Não é culpa sua ...e nem dele...
Aproximei-me sentei ao seu lado e contei tudo que sabia olhando em seus olhos, que por nenhum momento se sobressaltaram:
- Há muito tempo atrás, um nobre teve dois filhos gêmeos. Eram garotos idênticos e ninguém conseguia diferencia-los. Quando estes completaram dezenove anos um deles cruzou a praça principal enfurecido, desafiando para um duelo um jovem, talvez um pouco mais velho, na frente de todos. Eles lutaram e o jovem foi morto, o outro fugiu apavorado e ninguém soube dizer qual dos gêmeos era o culpado. Diante do velho rei cada qual se acusou dizendo que o irmão, inocente, queria tomar o lugar do outro. Sem saber o que fazer, tendo que punir o culpado, mas não querendo condenar o inocente o soberano trancou os dois na grande torre azul acreditando que com o tempo o inocente desistisse da prisão e mesmo que ambos resolvessem dizerem-se inocentes, uma vez questionado sobre os acontecimentos o culpado denunciar-se-ia.
- Deu certo?
- Não. De inicio os guardas os ouviam discutindo, mas ao fim de dois anos apenas sussurravam até que um dia um deles gritou por ajuda, acordara com o irmão morto. Voltaram a questioná-lo sobre o assassinato e suas únicas palavras fora uma pergunta ao pai do jovem assassinado que era também conselheiro do rei: se já não tinha o suficiente para sua vingança.
Um homem velho a que todos chamavam de sábio passava pelo reino naqueles dias e, pressionado por sua corte e pelo pai do jovem morto, o rei mandou chama-lo para ajudá-lo no julgamento.
- e o que o sábio disse?
- ele olhou com tristeza para o velho rei e o pequeno príncipe que deveria ter mais ou menos a sua idade ao seu lado e disse que não poderia ajudá-lo. Mas o conselheiro, o agarrou pelo braço e disse que seus olhos mostravam que vira algo.
E com tristeza na voz o sábio disse: no futuro o segundo tomará o lugar do primeiro. E com fúria disse ao conselheiro. E você sentenciou seu reino a esta maldição.
- O que isso significa?
- Ninguém sabe. Os sábios sempre dizem coisas que só compreendemos quando acontece.
- E o que aconteceu com o rapaz?
- O rei o expulsou do reino sobre pena de morte se retornasse e ele e seu pai foram com o sábio, que permitiu que o acompanhassem. E desde então todo o reino passou a considerar que a maldição do sábio cairia sobre toda a família que tivesse gêmeos. Enquanto eu falava observava o rosto de Valentin, temendo sua reação, mas apesar de tudo que eu revelava, ele olhava para mim com naturalidade. E eu continuei como se falássemos do fim de tarde:
- O velho rei era seu avô e agora o rei é seu pai.
Valentim permaneceu em silêncio pelo que me pareceu anos e eu senti minha respiração falhar. Ele sabia o que significava ser rei e principalmente o que ele teria se fosse o príncipe e a esta altura já tinha compreendido que o irmão o era enquanto ele vivia longe de tudo, mas ele pareceu não considerar o fato, e não me questionou porque era ele que vivia comigo ou como tudo aconteceu. Seus olhos se iluminaram quando exclamou com a voz quase sumida:
- Eu tenho um irmão gêmeo?!
- Sim
E parecendo satisfeito, sem me perguntar mais nada, ficou a refletir sobre o pôr-do-sol e quando jantamos conversamos sobre as coisas da vila e fomos para nossas camas do mesmo modo que todos os dias.
Contudo, acordei sobressaltado logo depois, pois em meus sonhos vira um Valentin muito zangado gritando com a voz do rei “Serafim, mate-o”, aproximei-me de sua cama, ao lado da minha, e o vi dormindo tão tranqüilo quanto todas as noites em que eu acordava de pesadelos aos quais guerreiros irrompiam a porta e o levavam. Mas meu coração não se acalmou, passei a noite imaginando sua reação de fúria quando finalmente compreendesse tudo. Eu conhecia Valentim desde seus primeiros suspiros, mas ainda não confiava em meu coração. E minha mente dizia que era uma questão de tempo para tudo ruir. E voltei a me recordar do destino dos gêmeos aprisionados na torre azul, quando tudo aconteceu e eu e Bonifácio vimos o olhar fuzilante do conselheiro para com o gêmeo sobrevivente, éramos menores que Valentim. Mas nunca esqueci aquele olhar duro e perverso, é da natureza do ser humano registrar sempre o ruim com mais realismo, pois eu não lembrava do olhar dos dois irmãos ao serem mandados a torre juntos.


Ao acordar na manhã seguinte o vi sentado aos pés de sua cama, no outro lado do quarto, minha cabeça girava pela noite mal dormida e cheia de pesadelos e por uma última vez me julguei imprudente demais em falar tanto, tão subitamente. Mas o que é feito está feito e eu sabia que não conseguiria falar com ele de outro modo. Criei Valentin como a um filho, mas nunca o deixei pensar que era meu, era natural que quisesse saber e justo que eu fosso verdadeiro. Por fim convenci-me de que se ele me questionava então este era o melhor momento e tinha de fazer o meu melhor para que ele continuasse a ser o que sempre fora; feliz. Devo ter me demorado um pouco em toda esta reflexão e quando voltei a olhá-lo a me observar tive a impressão de que ele ouvia meus pensamentos e esperava eles se calarem e só então me perguntou:
- O que o senhor era antes de eu nascer?
Respirei fundo, ele ainda era o mesmo de sempre e não havia sinal de fúria ou tristeza em seus olhos, me esforcei para olhar para ele enquanto falava, decidi que não mentiria ou omitiria nada do que me perguntasse e que os espíritos me ajudassem:
- O primeiro guerreiro.
- O senhor fica triste por não ser mais?
- Eu era feliz lá, e sou feliz aqui.
Ele sorriu e meu coração encheu-se de ternura, mas minha mente ainda vacilava e tive de perguntar:
- Valentim... saber de tudo isso não o deixa triste?
- Não. Meu irmão é igual a mim?
- Suponho que devem ter o mesmo rosto, mas não posso afirmar. Nem todos os gêmeos são idênticos.
- O mesmo rosto? Os mesmo olhos e cabelos, tudo?
- E os mesmos pés, mãos ... mas não os mesmos pensamentos ou gestos.
- Mas os gêmeos da historia se defenderam até o fim do mesmo modo.
- Mas só um cometeu o crime.
E seus olhos brilharam de admiração:
- Não é fabuloso?!
Valentin meditou sobre isso pelo tempo que eu aquecia a água e eu preparei meu espírito, ele não se indignara com a maldição porque estava encantado demais com historia dos dois irmãos e meu coração já sabia o que ele iria me pedir quando refletisse sobre tudo. E me preparei para ser firme em minha negativa. Ele tomou o chá e me olhou nos olhos, pude senti-lo, mas não desvie o olhar de minha bebida.
- Mestre Serafim...
- Uhm?
- Eu posso ver meu irmão?
As palavras me escorregaram sozinhas sem meu consentimento:
- Você pode vê-lo ... mas não ele a você
- Quando?
Seus olhos brilhavam de expectativa e foi com um nó na garganta que ouvi meu próprio sussurro:
- Amanhã você o verá.



No dia seguinte comemorava-se a festa anual da paz e todo o reino reunia-se em volta do castelo, para assistir as demonstrações dos guerreiros e servirem-se de grande diversidade de comida. Muitas pessoas usavam máscaras coloridas ou trajes de festa. Por isto esse era o melhor dia para nós entrarmos no castelo sem sermos reconhecidos. Olívio e sua família, assim como muitos da aldeia, esperavam com ansiedade por este dia e todos os anos saiam da aldeia ainda de madrugada para retornar tarde da noite. Eu nunca havia aceitado o convite de acompanhá-los, ao invés disso eu e Valentim sempre passávamos o dia na mata, treinando, observando os animais ou simplesmente caminhando para ele não sentir a falta de todos e não desejar ir com eles.
Por tudo isso Olívio surpreendeu-se quando, naquela tarde, fui a sua cabana e perguntei se podíamos acompanhá-los na próxima madrugada. Mas logo ele e a esposa riam e me abraçavam, como se eu estivesse superando uma grande dor, e Silvestre correu a procura de Valentin com duas máscaras nas mãos.
Margarida revelou-me que Silvestre as fizera e tentava convence-los há dias para permitirem que ele convidasse Valentim para ir com eles. E agradeci aos céus pela amizade dos dois mais uma vez, agora não teria que me preocupar em oculta-lo caso seu rosto fosse igual ao do príncipe.
Assim, no dia seguinte saímos, Silvestre e o irmão não paravam de contar a Valentim as maravilhas que ele veria e ele ria e cantava com eles, mais eufórico do que jamais o vira antes. Quando avistamos o castelo ele foi o primeiro a por sua máscara e sorri por sua maturidade. Porem, meu coração não estava preparado, eu preocupei-me tanto com Valentin que esquecera de meus sentimentos e quando atravessamos o portão ele caiu-me como uma pedra eu meu peito. Vi o rosto de Rosa em todos os lugares e meu sangue parou quando avistei Justo ao longe, escoltando a carruagem real.
Foi o dia mais pesaroso, mais difícil de minha vida e que não passava nunca, eu via as pessoas comerem e cantarem, ouvia seus gritos de entusiasmo com cada demonstração de habilidade dos guerreiros e tudo se transformava em vultos que agarravam Valentin e o levavam de mim. Abria os olhos e o procurava, me angustiava não poder ver o seu rosto, não poder ler o que ele sentia. Ele permanecia rijo ao meu lado e não se afastava mesmo sob a insistência de Silvestre para acompanhá-lo, para se aproximarem mais de uma demonstração ou ir ver alguma maravilha e Silvestre então se afastava e retornava e Valentin permanecia ao meu lado como se compreendesse que eu não suportaria perde-lo de vista.
Até que, depois do que pareceu séculos, as trombetas tocaram e todos silenciaram-se para ouvir a saudação do rei. A carruagem parara próximo a roda de apresentações e a família real desceu. Primeiro o rei, depois a rainha e por fim o príncipe Felix, alguém o anunciou e me dei conta que só então soube o seu nome. E minhas últimas esperanças morreram. Não havia diferença física entre ele e Valentin, eram gêmeos idênticos. Não ouvi o discurso do rei, nem a aclamação do povo, só via Valentim, imóvel, atrás de sua máscara colorida que por um instante escorregou de seu rosto e meu coração parou. Mas ele, sereno, recolocou-a e como por milagre nada acontece além de finalmente a família real se despedir e partir sobre a aclamação do povo.
Então Valentin pegou minha mão e eu despertei do meu encanto, não podia ver seu rosto, mas sua voz era suave e tranqüila:
- Agora já podemos ir.
Olívio pareceu entender meu sofrimento, apesar de não poder imaginar qual era realmente, e chamou sua família para partirmos. Acho que me restavam poucas forças e minha expressão deveria estar denunciando meu estado de espírito. Sempre tive consciência de que se eu e Valentin vivíamos bem, muito ou quase tudo devíamos a generosidade e percepção de Olívio e sua família. Valentin aprendera muito no convívio com eles que sempre foram uma família verdadeira uns com os outro e de certo modo nos sentíamos parte dela.
Nós nunca voltamos a conversar sobre minha chegada depois daquele dia, Olívio nunca precisou de explicações, mas ele sentia que algo me afligia e sempre foi muito companheiro. E muitas vezes desejei poder lhe contar tudo, mas isso exporia a ele e sua família a maldição, e eu não queria que nada de mal acontecesse a eles. Mas de certo modo eles já faziam parte de tudo simplesmente por nos amarmos como uma verdadeira família.

(...) por Adri.n

4 comentários:

Anônimo disse...

Fofa: tens que arrumar aquela parte sobre os gêmeos e que idade eles tem quando matam um outro menino, adolescente, homem? Ainda é confuso: quem é o pequeno príncipe que vai embora junto com o sábio? Quem toinha a mesma idade do Valentim , na época? Acho que é preciso reescrever de um modo mais claro essa parte. Beijão no coração e parabéns: vc tem veia de escritora! Déborah

Adri.n disse...

Ops, enviei o arquivo antigo.
Mas já está corrigido. "dá uma olhada agora". Fico esperando por suas críticas.

Anônimo disse...

A terceira parte é nova, né? a parte da ida à festa an vila. Como vc vai sair dessa? Gêmeos idênticos me lembram o Príncipe e o Mendigo, acho que é de Mark Twain. Já leu? Se for ler, prepare-se, pois é triste. Mas não é um Victo Hugo, não se preocupe. Este capítulo era bastante previspivel, por isso penso que o próximo deverá, obrigatoriamente, apresentar acontecimentos inesperados: o príncipe se perde na floresta? É raptado e foge e vai dar lá na vila do irmão gêmeo? Eu não tenho imaginação, mas vc tem, logo traga throlls e gremlins e ogros e ursinhos e dragões - isso seria ótimo - para fazer companhia as suas palavras. Fico no aguardo do Aragorn ou Eragon q vc vai ter q criar, ou não, em algum momento...
Déborah

Adri.n disse...

Já li muito Mark Twain e o príncipe e o mendigo fazem parte desta lista, eu diria que é forte, não triste.... e garanto que meu conto nada lembra essa que com certeza é muito mais fabulosa. Quanto aos seres mágicos lamento informar que fazem parte de uma outra estória...
Obrigada por seu constante carinho!